I
“Olha, cara, eu tenho dezoito anos” Disse ao
senhor atrás do balcão de madeira.
Eu não
devia ter tirado a porra da barba. Agora ficam me pedindo a identidade em
qualquer bar de merda que eu vou. Nesse ponto, eu já estava completamente
bêbado e entrei no primeiro bar que achei. Acabou que era um bar sério, de
ricos. Eu já tinha virado três packs de cerveja junto com João.
“Então me mostre uma identidade. ” Me disse com
sua mão estendida esperando a identidade.
A tirei da carteira e mostrei a ele. 1998,
dezoito anos.
“Viu porra! Falei! ”
“Boa, garoto. O que que você quer? ” Me disse devolvendo
a identidade.
“Me veja duas cervejas. Uma para mim e outra
para o cavalheiro. ” Falei olhando para ele e apontando para João ao meu lado.
“Ele tem dezoito também?”
“Eu vou te arrebentar, cara!”
“Olha, seu moleque, saia do meu bar antes que
eu chame a polícia!” Falou com o dedo na minha cara.
“Ok, ok. Desculpe. Ele tem dezoito, sim. Mostre
sua carteira João”
João mostrou sua carteira e recebemos as
cervejas. Estavam geladas e muito boas na verdade. Bares de ricos têm suas
vantagens, as vezes. Bebemos mais três cervejas e saímos.
“Que horas são? ” Perguntei a João, que estava
menos bêbado e eufórico do que eu.
“São sete horas” Disse olhando para o celular.
“Vamos ao café com poesia. Ainda podemos ver se
eu posso ler um poema. ”
“Ok”
Ao chegar no café, eu li meu poema para Charles
Bukowski. Ele era o maior poeta. Ele escrevia porque precisava escrever, como
qualquer poeta deveria ser. Por isso sua escrita era tão seca e real. Era isso
que eu admirava nele. Como qualquer café com uma boa quantidade de pessoas
metidas a hipsters e que frequentavam todas as baladas LGBT e alternativas de
Curitiba, adoraram o poema. Ao terminar a leitura, todos aplaudiram. Todas as garotas
de franja e alargadores e todos os garotos de toca bege e barbas longas ou
malfeitas. Menos uma garota. Ela que eu nunca tinha visto lá. Ela estava quieta com seu café e pacote de
camels no seu bolso da camisa preta. Desci do palco. Eu olhando para ela e ela
olhando para mim, sentindo que eu ia falar com ela.
“Oi. ”
“Oi” disse sorrindo.
“Você não gostou do poema? ” Disse tentando não
colocar agressividade na voz.
“Não muito. Foi seco. Simples. ”
“Essa era a ideia. Bukowski era seco e simples.
”
“Bukowski era um velho bêbado”
“Você é louca. Qual o seu nome? ” Disse depois
de me sentar em sua frente.
“Gabriela. Eu sei o seu pelo poema” Ela tinha
cabelo preto com um undercut. Era um
tanto quanto intimidador. Ela usava óculos marrons e usava roupas pretas. Eu
senti uma conexão estranha ao me sentar. Senti que falava comigo mesmo. Ela era
linda. Sabia que algo aconteceria. Podia ser a cerveja.
“Como assim? ” Me sentia burro. Não sabia o que
falar. Tinha medo de errar.
“Você falou seu nome depois do nome do poema. ”
Claro. Eu falei mesmo. Tentei me recompor.
“Quer ir em um bar comigo? Tipo. Agora ”
“Uhm. Pode ser”
“OK. Me dê um minuto. ”
Me dirigi a João e expliquei a situação. Ele
iria para casa.
“Boa sorte, cara. Nunca vi você fazer algo
parecido. É engraçado. ”
“É o certo. Eu sei. ”
Me dirigi a Gabriela.
“Vamos? ”
“Eu tenho que pagar. ” Disse rindo. Ela parecia
ser melhor do que eu. Eu estava nervoso. Não sabia o que fazer. Era estranho.
“Ah! Claro! ”
Chamei Maria, a atendente do café. Ela veio e
Gabriela pagou sua conta. Saímos em direção ao bar. Não sabia onde leva-la. Não
sabia qual bar. Mas logo pensei em um e fomos para ele. Ao entrar no bar fomos
cumprimentados pelo atendente.
“Ah não! Você de novo? Não quero mais
problemas, sua merdinha! ”
“Calma senhor, não causarei nenhum problema.
Juro. ”
Não fazia ideia de como agir. Ao avistar
Gabriela atrás de mim ele disse:
“É incrível o que um homem faz por uma foda! ”
Fiquei furioso.
“Ou! Seu puto velho! Não fala assim dela! Ela é
apenas uma amiga! Se você falar assim de novo eu te quebro na porrada! ” Disse
apontando para ele.
Olhei para Gabriela. Ela estava normal. Não
estava assustada nem nada do tipo. Até que ela me surpreendeu.
“É seu merda. Fala isso de novo que eu arranco
suas bolas fora! ”
“Saiam daqui agora! ” Disse ele vindo em
direção a nós dois.
Saímos correndo para fora do bar. Estávamos
rindo. Eu estava apaixonado. Completamente perdido em sua risada.
“Isso foi incrível! Meu Deus! Você é muito
foda! ” Disse a ela gritando para os céus como um homem perdido no mundo.
Ela disse séria:
“Você foi muito legal em dizer o que falou para
ele no bar”
Acendeu um Camel e me ofereceu um. Peguei o
cigarro e acendi.
“Ah. Não foi nada. ” Disse soprando a fumaça
disfarçando a vergonha.
“O que fazemos agora? ” Disse ela ajeitando seu
cabelo.
“Hmm. Vamos ao parque. ”
Fomos andando e fumando. Conversamos sobre
tudo. Ela sabia tudo sobre poesia, literatura, música, cinema e tudo que se
podia imaginar. Eu estava animado pela primeira vez em meses. Eu queria falar e
conversar e fazer tudo com ela. Chegamos ao parque e sentamos em um banco.
“Você conhece Moose Blood? ” Perguntei a ela.
“Claro. Amo essa banda”. Isso era incrível.
Tudo estava incrível.
Nós fumamos cigarros e escutamos música por
horas.
“Qual o seu número?”
Ela me deu o número e ficamos de sair de novo
no dia seguinte.
II
Estava tudo ótimo. Pela primeira vez desde a
morte de Everaldo estava tudo bem. Tudo ok. Eu estava namorando Gabriela. Nós
saíamos todos os dias e ficávamos na casa um do outro. Ela pintava. Muito bem.
E escrevia. Melhor ainda. Nós nos amávamos. Mas havia dias em que ela não
estava bem. Queria ficar quieta. E não sabia como ajudar. Nesses dias nós
tomávamos café e fumávamos em silêncio. Ela pintava seus quadros em silêncio.
Eram quadros tristes, de pessoas mortas. Um dos quadros eram duas pessoas. Uma
estava enforcada e outra ao seu lado chorando. Era tudo escuro, com um estilo
barroco de pintura.
“Como que você quer morrer? ” Ela me perguntou
um dia tomando seu café já frio e com o cigarro na outra mão.
“Não sei. E você? ” Depressão é uma merda. Ela
vem e te pega de surpresa. De repente tudo está ruim e você não sabe porquê.
Ela sofria muito com isso. Ela queria morrer alguns dias. Eu não aguentava
pensar em viver sem ela. Mas ela aguentava viver sem mim, de alguma forma. A depressão as vezes é mais forte do que o
amor.
“Eu vou me matar. ”
“Não fale isso! Você é perfeita demais para
isso! Eu te amo! Porra! Preciso de você aqui. Fico perdido sem você. ”
“Desculpe” Falou olhando para seus cortes no
braço.
“Eu te amo. Não me deixe”
“Não vou. Também te amo” Ela voltou a pintar
seu quadro. Eu voltei a escrever meu poema.
III
Outros dias ela estava bem. Feliz como no dia
em que nós nos conhecemos. Esse era um dia desses. Ela estava bem, e eu também.
Nós estávamos todos no bar. Hobs, João, eu e ela. Tudo ia bem. Estávamos
bêbados e rindo.
“Tudo está perfeito, queria pintar um quadro
desta cena...” Me disse ao me olhar docemente por trás de seus óculos.
“Também acho. Estamos bem. Você está bem. Quer
ir para casa pintar? ” Perguntei passando a minha mão em seu cabelo.
“Sim” Me disse rindo.
Fomos para casa. Ela pintou um quadro de todos
nós na mesa, rindo. Ela estava radiante na pintura ao meu lado, como deveria
estar.
“Está muito bom. Você está linda. ” Disse
contemplando o quadro em minha frente. O quarto dela estava bagunçado, com a
cama desarrumada e potes de tinta para todos os lados. Meus livros estavam
jogados pelo chão e alguns estavam na prateleira. Tudo estava bagunçado, menos
nossas vidas. Com ela tudo ficava arrumado. Ficava bem e calmo.
IV
Estava
chorando. Muito. Tudo era uma merda novamente. Estava no parque. Isso não era
uma história de amor. Não era nada. Perdido. A ambulância estava ao meu lado e
a polícia também.
“Ela te
chamou aqui? Ela não estava bem? ” Me perguntava o policial.
“Sim. Ela
me chamou aqui. Era para estar tudo bem. No dia anterior estava tudo bem! ”
Respondi. Tudo na minha vida era para dar errado. Nunca acharia alguém como ela
de novo. Tudo dava errado. Tudo estava destinado a ser triste. Não sei se ela
precisava ir, se ela era uma lama aprisionada aqui. Não sei de nada mais. Só
sei que ela conseguiu me deixar. Ela tinha prometido. Era culpa minha? Era
culpa de alguém?
“Puta
merda, isso não pode ser verdade! ” Me disse Hobs.
“Mas é,
cara. A vida é assim. As coisas acontecem. Comigo pelo menos. Do nada eu perco
as coisas. E daqui a pouco eu vou me perder. ”
“Não fale
isso. Nós estaremos aqui com você. ”
“Sei lá. As
vezes quero ir embora. Daqui. Ficar com ela, talvez”
“Você não
acredita nessas coisas. ”
“Talvez
deva começar...”
“Deixa isso
para lá”
“Como? Ela
se foi. A única coisa que estava me deixando feliz e no chão. Se foi. Ela quis
ir. Naquela árvore. Por que que eu conheci ela se era para ela ir? ”
“Não sei,
cara. Talvez tinha que ser assim. ”
“ Estou
cansado das coisas assim. Quero ir também. ”
“Não, cara.
Para. ”
“Ok...”
V
“Ela se
foi. E me dói. Não sei transformar essa dor em arte. Tudo me faz mal. Não sei transformar
essa dor em poesia. Não essa dor que nunca vai embora. Só vai diminuir. E sei
como cada um de vocês se sente. Sei da perda que tiveram. Dessa garota perfeita
que era ela. Que me fazia tão bem. Que me fazia. ” Disse a todos no funeral da
garota que eu mais amei em toda minha vida. Da garota que mais me ajudou na
minha vida. Da garota que me fazia inteiro. Da garota que fazia todas as
poesias de amor reais. Da garota. Eu precisava dela e ela não estava lá.
Eu sentei
no banco depois de todos terem ido embora. Era eu e eu mesmo. Acendi um
cigarro. Era uma Camel. Do mesmo tipo que nós fumávamos. Se não era para ser,
não foi. Não consegui terminar meu
cigarro. Estava devastado. Olhei para os lados. Olhei no horizonte. Vi um
vulto. No fim do cemitério. Fui andando até onde ela estava enterrada. Não. Ela
não estava lá. O vulto não era ela. Ela não estava lá. E nunca estaria mais.
FIM